Cinco Anos de Amor

Por volta das 8h do dia 5 de Dezembro de 2014, já estou a caminho de uma reportagem nas Beiras. Hei-de almoçar algures para os lados de Castelo Branco e sei de antemão que vou jantar com a Susana, a um restaurante que faz do sushi a sua especialidade. Não se pode dizer que não a uma futura mamã com desejos de gastronomia requintada, senão ela põe-nos as malas à porta! A Lia, que não é grande fã de peixe cru, provavelmente comerá um panado de frango, ou coisa que o valha. Está tudo combinado desde muito cedo. E eu que nem me atreva a sugerir algo diferente, senão o meu filho ainda nasce com cara de sashimi ou de temaki.

Pelo meio (quase me esquecia) tenho de resolver a minha vida. Literalmente. O programa “Querida Júlia” está prestes a mudar de mãos, dentro em breve passará a chamar-se “Queridas Manhãs” e uma nova produtora vai assumir o comando do projecto. Na prática apenas trabalharei para a SIC até ao fim do ano, altura a partir da qual serei funcionário da FremantleMedia, caso cheguemos a acordo.

Hoje é dia de tentar acertar condições contratuais com o futuro patrão. O momento da verdade vai acontecer assim que regresse da reportagem. Mas até lá ainda tenho 500 quilómetros de estrada para galgar, entrevistas para fazer e imagens para gravar.

Os minutos voam até à hora de almoço e a primeira parte da jornada corre conforme previsto. Depois de terminar a reportagem e de comer uma bela cabidela de coelho, faço-me à estrada, direito a Carnaxide. Começo a antecipar os possíveis cenários com os quais me confrontarei quando chegar à base. Poucos quilómetros mais à frente, a campainha do telefone interrompe o meu tricotado mental. É a Susana a explicar que está a perder liquido amniótico. 

– “E isso quer dizer o quê?” – pergunta o jornalista, claramente impreparado para a entrevista, receando que a esposa vá parir o seu herdeiro ali mesmo durante a videochamada.

Do outro lado da linha ouvem-se palavras tranquilizadoras. Afinal ainda não está na hora de nascer o rebento. Qualquer pequeno esforço poderá, em teoria, estar na origem desta emergência liquida. Fico mais descansado. Porém, por via das dúvidas, sugiro-lhe que ligue para a linha Saúde 24, descreva os sintomas a um técnico e aja em conformidade com as indicações fornecidas. Pouco depois a Susana fala-me outra vez ao ouvido, para informar que já pegou na bagagem e que somente aguarda a chegada da irmã mais velha para rumarem juntas ao Hospital de São Francisco Xavier, tal como o enfermeiro recomendara via telefone. Suspense. O Afonso quer armar-se em Hitchcock. O que andará a tramar? Ainda não sabemos.

Estou quase a chegar a Lisboa, quando a minha mulher volta a contactar-me, já do hospital, informando-me do diagnóstico. Afinal a bolsa amnótica rompeu e deram-lhe um comprimido para acelerar o processo. Dentro de algum tempo começarão as contrações. Contrariamente aos prognósticos da progenitora, o puto quer abrir caminho para o mundo às 38 semanas de gestação, apesar dos livros da especialidade dizerem que deve esperar até às 41. Talvez por não saber ler, o Afonso está-se marimbando para  essas teorias. Descarta o sushi ao jantar e decide já não ter mais nada para fazer no quentinho do ventre materno. Abram alas! Ele está a chegar!

  • “Não precisas de vir à pressa amor, porque isto ainda vai demorar”, diz a Susana com os nervos.

Como tenho a mania de acreditar nas pessoas que amo, escuso-me a correr imediatamente para o hospital e tento manter o foco na reunião que terá lugar daí a poucos minutos. Assim que entro na redação apercebo-me da tensão e ansiedade no ar.  Semblantes fechados. Os meus colegas encontram-se em situações semelhantes à minha. Uns já negociaram o seu futuro próximo. Outros estão em vias disso. As mudanças estruturais são sempre complicadas, por vezes até dolorosas. Esta não é excepção.

  • “Malta, vou ser pai!” – exclamo assim que transponho o último degrau que me separava do piso da redação. Mas não há manifestações efusivas de alegria, nem confetis, nem uma banda a sair ao meu encontro acompanhada por palhaços, gajos com andas e cabeçudos. Nada. 

– “Porra, ninguém me liga. Se calhar não ouviram.” – Conjecturo, em exercício de introspecção, depois de observar somente dois ou três pares de olhos darem-se ao trabalho de desviar atenções daquilo que estão a fazer, para me encarar. E mesmo esses, durante pouco tempo. Urge uma alteração do conteúdo da mensagem, caso contrário ninguém dará conta das novidades.

  • “Hoje, pessoal! Vou ser pai hoje! Agora! Quero dizer, daqui a pouco. A minha mulher já está no hospital.” – disparo então, a sorrir como um parvinho. 

Finalmente confetis! Só os palhaços e os gajos das andas é que não quiseram mesmo aparecer. Os sorrisos multiplicam-se e as felicitações também. Por entre aquelas dezenas de almas, apenas uma está em vias de saborear a paternidade, mas todas partilham de forma genuína e sincera um pequeno pedaço de alegria. A tensão e a ansiedade dão lugar à esperança. É curioso como quase tudo na vida pode mudar num segundo.

Já passa das 17h30 quando entro na sala de comando para reunir com os futuros patrões. Antes sequer de me sentar, digo ao que venho.

  • “Caríssimos, não quero ser indelicado, mas só temos cinco minutos para fazer esta reunião!” – Faz-se silêncio. Cinco almas olham para mim, incrédulas.
  • “Acham que não chega?” – indago, provavelmente com a mesma cara de parvo que ostentava na redação. Os incrédulos, passam a estar de queixo caído.

Após pedir desculpa pela apresentação desajeitada, esclareço com um sorriso de orelha a orelha, que a minha mulher deve estar com contrações enquanto nós andamos para ali a perorar. Se alguém ficou com duvidas acerca da minha sanidade mental assim que entrei na sala de reuniões, talvez tenha agora sossegado. Afinal o gajo não é estúpido! Só está grávido! 

Provavelmente passaram mais de cinco minutos, mas de certeza que não passaram dez até estar outra vez na rua, com quase tudo resolvido relativamente ao meu futuro profissional. Saio de Carnaxide a pensar apenas no nascimento do meu filho. Quando me apresento no São Francisco Xavier, sou encaminhado para o quarto onde a minha mulher está com contrações há 30 ou 40 minutos. Pouco passa das 18h30.

Um esgar de dor é a primeira expressão que os meus olhos vislumbram assim que alcançam o rosto dela. Segundos depois está tudo bem. As dores ainda não são muito fortes e permitem que um ser humano sem super-poderes consiga respirar. À defesa, a Susana avisa que dentro em breve a coisa vai mudar de figura. Pede-me para não me assustar com os gritos lancinantes que previsivelmente serão projectados pelas suas delicadas cordas vocais. E pede-me, sobretudo, para não julgar que ela se está a transformar numa criatura tenebrosa, como as dos filmes de terror de segunda categoria que muitas vezes alugamos, para vemos agarrados (ou mais recentemente, a fazer conchinha) no sofá da sala.

Pouco depois das 20h30 as contrações aumentam de intensidade. Meia hora depois o staff hospitalar corre comigo do quarto porque vai ser administrada anestesia. Explicam-me que não posso estar ali naquele momento, que o melhor é aproveitar para apanhar ar, para jantar, para fazer o que me apetecer. Resumindo e concluindo, sou escorraçado. A Susana grita cada vez mais e parece realmente prestes a transformar-se. Sai um shot de epidural!

  • “Acha que dá mesmo tempo para jantar?”, pergunto à menina que me acompanha até à porta. “Não vou perder o parto, nem que chovam pedras!” – Acrescento peremptoriamente.
  • “Não se preocupe. Vá jantar descansado, que não perde o nascimento do seu filho.” – responde a enfermeira, de forma segura.

Cinco ou dez minutos depois já vou a caminho de uma hamburgueria próxima do hospital, na companhia de alguns amigos que me acompanham desde que saí da SIC, aos quais se juntaram entretanto o Hernâni Carvalho e a mulher dele, a Ana Rita, vindos propositadamente de Mafra. Passamos o jantar na paródia e pelas 21h50, a Susana liga-me mais uma vez. 

  • “Querem ver que aquela malta do hospital fez mal as contas ao tempo e o puto já está cá fora?” – interrogo-me num estremecimento, assim que vejo o nome dela no visor do telemóvel. Indeciso entre trincar o hambúrguer ou morder o telefone, acabo por atender a chamada e ouço a voz ofegante da minha mulher, pedindo-me para correr ao encontro dela. Está quase! Largo imediatamente tudo e todos. Voo rua abaixo com pedaços de Big Mac presos nos intervalos dos dentes. Não há tempo para adornar a situação. 

Cinco minutos depois, chego ao quarto onde decorre o parto. São 22h00, mais coisa, menos coisa. A Susana já se transformou. Continua gira, mas já se transformou. Talvez possa concorrer a Miss Criatura Transformada Pelas Contrações, mas aquele não é o momento certo para pensar no assunto. Aliás, nem sei como conseguiu telefonar para mim no meio de tamanho frenesim. Enquanto grita, seguro-lhe firmemente na mão e mantenho o tom sereno na voz, esperando conseguir tranquiliza-la. Acho que ela nem me está a ouvir, mas persisto na intenção. Não me sinto minimamente nervoso, mas isso é fácil de dizer porque não sou eu quem está de perna aberta, em cima daquela marquesa. Permaneço expectante. Concentrado. Absorvo todos os segundos.

Às 22h42, depois da mãe fazer muita força, o Afonso decide sair. Um segundo de silêncio. O puto não berra. Mais um segundo de suspense. O puto continua a não berrar. Os meus olhos e o meu cérebro registam tudo em slow motion. Dois segundos depois ouve-se então uma choradeira das boas e um esguicho de chichi voa certeiro em direção à cara da parteira. A profissional limpa-se com dignidade e o menino parece mais aliviado. Corto o cordão umbilical. Tudo normal. Tudo espectacular! Devia ter olhado para aquele berreiro como um prenuncio dos tempos que estavam para vir…

Minutos depois tenho 3,270 kg e 53 centímetros de vida ao meu colo. Parece demasiado bom para ser verdade. Nunca pensei ser capaz de assinar uma obra tão perfeita, tão sublime, no meu tempo de vida. Peço à Susana para fazer boa cara, de modo a tirar a primeira selfie da família feliz. Falta a Lia, que àquela hora já deve estar a dormir em casa da tia. A menina terá de esperar pelo dia seguinte para pegar no maninho ao colo, mas naquele momento, naquele lugar, também ocupa os nossos corações. A mãe tenta recompor-se e finge estar com vontade de tirar fotos, só para fazer a vontade ao chato do marido. Portou-se como uma heroína.

In “O Meu Filho Não Dorme”, 2018, Luís Maia, Editora Guerra e Paz

Publicado por

Luís Maia

Luís Maia nasceu a 15 de Outubro de 1976, na Póvoa de Varzim. Licenciou-se em Comunicação Social no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas. Em 1999 trocou um emprego em part-time, num call center, por um estágio remunerado somente com senhas de refeição, na redação da TVI. Iniciou aí uma carreira de repórter que o levou a produtoras como a Duvideo, Teresa Guilherme Produções e Comunicassom, para além do jornal 24 Horas e de estações como a TVI e a SIC. Entre 2008 e 2009 viveu em Angola, onde coordenou o entretenimento do primeiro canal privado daquele país, a TV Zimbo. Actualmente trabalha para a FremantleMedia, fazendo reportagens em directo no segmento de actualidade criminal, do programa Queridas Manhãs da SIC. É baterista reformado, ex-futuro jogador de poker. Mas é, sobretudo, marido, pai e, segundo consta, bom chefe de família.

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